Roman Polanski teria todas as razões para chegar recluso aos 80 anos, completados hoje. No entanto, o cineasta franco-polonês lança um filme por ano e diz não ter medo de controvérsias. Ao contrário, parece até procurar encrenca.
Seu novo longa, "A Pele de Vênus", que competiu no Festival de Cannes deste ano e estreia em 2014 no Brasil, aborda sadomasoquismo e dominação feminina.
"Não tenho interesse em sadomasoquismo, mas o puritanismo está dominando o mundo. Hoje em dia, se você oferece flores para uma mulher, é considerado indecente", disse o diretor.
A sexualidade é quase onipresente na obra do cineasta. No novo filme, Emmanuelle Seigner, 47, que é mulher do diretor há 24 anos, interpreta uma atriz aparentemente com atributos físicos mais interessantes do que os intelectuais.
Ela quer trabalhar e atormenta o diretor de uma peça (Mathieu Amalric, parecidíssimo com Polanski) baseada na obra do escritor Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), que trata de relação entre os sexos, tirania, masoquismo e submissão.
"Houve uma ruptura na sociedade entre a invenção da pílula anticoncepcional [nos anos 1960] e a descoberta da Aids [nos anos 1980] que nos afeta até hoje, não apenas nas relações sexuais, mas no modo como tratamos uns aos outros. Nivelar os gêneros é uma idiotice. Somos diferentes."
Temas controversos permeiam a vida do diretor dos clássicos "O Bebê de Rosemary" (1968), "Chinatown" (1974) e de "O Pianista" (2002), que lhe rendeu o Oscar de direção.
Sua segunda mulher, Sharon Tate, grávida, foi assassinada pela gangue do maníaco Charles Manson, em 1969.
Oito anos depois, Polanski foi preso nos EUA sob a acusação de estuprar uma garota de 13 anos. O caso ecoa até hoje -em 2009, foi preso na Suíça a pedido dos EUA e, mês que vem, Samantha Geimer, hoje com 49 anos, lança seu primeiro livro sobre o caso.
Análise: Cineasta prioriza relações de submissão ilimitada ao outro
Seu filme mais recente, uma adaptação da peça de David Ives, baseada no livro "A Vênus das Peles" (1870) de Leopold von Sacher-Masoch, revisita um tema que há muito tem atraído o cineasta.
Entre dramas, tragicomédias e thrillers psicológicos (os clássicos "Repulsa ao Sexo" e "O Bebê de Rosemary"), o fato é que os filmes de Polanski --com um niilismo como pano de fundo-- primam por colocar em primeiro plano relações (e comportamentos) de submissão ilimitada ao outro.
O psiquiatra Richard von Krafft-Ebing (1840-1902) cunhou o termo "masoquismo" para designar um tipo de comportamento sexual por meio do qual um sujeito obtém prazer através da dor, de sofrimentos e de humilhações físicas e morais.
Ele atribuiu à literatura de Sacher-Masoch a renovação de uma entidade clínica definida menos pelo laço dor-prazer sexual do que pelo comportamento mais profundo de "escravatura e de humilhação".
Em "Lua de Fel", a abordagem de Polanski sobre o tema é explícita. Nigel (Hugh Grant) e Fiona (Kristin Scott Thomas) conhecem a voluptuosa Mimi (Emmanuelle Seigner) e seu marido Oscar (Peter Coyote), que decide narrar-lhes a história de sua paixão marcada por "sexo sem fronteiras" e sadismo.
O tema é retomado em "Deus da Carnificina" (2011). Nele, a cordialidade de dois casais, reunidos para selar a paz entre os filhos em guerra, termina por se transformar em um jogo de poder e humilhação mediado pela "fala".
A função imperativa e descritiva da linguagem é ultrapassada em direção a uma espécie de "não linguagem", a um erotismo do qual não se fala, ou, mesmo, da própria "violência que não fala".
Polanski parece ter ido além em "A Vênus das Peles". Colocou em cena um "herói masoquista" --ou uma heroína, não esqueçamos-- que aparenta ser educado e formado pela mulher autoritária. Mas, na realidade, é ele próprio que a forma e a disfarça e lhe dirige.
Assim, a construção remete ao filósofo Gilles Deleuze, que tratou em 2009 da "vítima que fala através do carrasco, sem comedimento".
fonte: The Guardian / Folha Sp